Mas depois de lê-lo tinha maior certeza de não estar louco. Estar em minoria, mesmo em minoria de um, não era sintoma de loucura. Havia verdade e havia mentira, e não se está louco porque se insiste em se agarrar à verdade mesmo contra o mundo todo. – Orwell, George em 1984

As eleições de 2018 no Brasil são marcadas por uma profunda radicalização não só de ideias e ideais mas de realidades: notícias falsas viajam mais velozes e profundamente do que os fatos e, numa era de pós-verdades, definem a narrativa e conduzem os resultados1.

O sistema por trás disso é bastante amplo, com técnicas historicamente conhecidas pelo seu uso por movimentos autoritários que dependem da manipulação e contenção do público. Viso, aqui, expor quais são e como funcionam essas engrenagens.

O primeiro mecanismo: a mentira

No meio jornalístico não se pode simplesmente publicar qualquer coisa - tanto quanto é necessário reportar, é necessário averiguar: tanto os dados como as fontes.

Mesmo a pessoa mais competente e empenhada vai errar, é inevitável - para retratar as falhas em materiais textuais foi criado o sistema de erratas. Basicamente, um adendo posterior que provê a informação correta.

Esse sistema é abusado por pessoas que sabem que podem usar de manchetes falsas (dentro de um limite para não constituir difamação) mas chamativas para gerar o máximo de renda possível com a notícia.

O grande problema é que a errata nunca tem o mesmo alcance da publicação inicial, visto que a mesma costuma existir num cantinho insignificante. O impacto disso é sabido - basta ver as diferenças de valor entre fazer propaganda na capa principal ou num caderno secundário. As publicações compreendem bem como o uso do espaço - virtual ou real - afeta completamente a recepção e o alcance da notícia.

Se muito, 10% dos leitores chegarão na informação correta e enquanto isso, corre a mentira pela boca das pessoas.

O segundo mecanismo: a ignorância

Há uma técnica opressiva de negociação em que a pessoa enviada para lidar com a transação é informada por seu contratante de um mínimo e um máximo que pode aceitar. Como a pessoa não tem nenhum poder de barganha de fato, podendo operar apenas dentro daquele limite pré-estabelecido, é fácil para a mesma ser incisiva e inflexível.

Isso é similar ao que percebemos com a difusão de informações falsas. Uma mentira que nós mesmos fabricamos pode ser desmentida pois reconhecemos a mesma como falsa e sabemos que existe outra realidade. Mas o que acontece quando não sabemos que algo é falso e acreditamos fielmente naquilo?

O resultado é que falaremos com convicção do tema e, como fantoches, não haverão argumentos que sirvam para nos desiludir. A mentira se torna a nossa realidade, se torna o espaço no qual iremos operar - incisivos, inflexíveis.

O terceiro mecanismo: a desconfiança

Boa parte do trabalho que os jornais e revistas fazem com suas notícias é dependente do grau de confiança que o público tem nessas entidades. A partir do momento em que uma publicação perde essa confiança, sua mensagem perde o seu valor.

Uma técnica para lidar com mídia de oposição é então atacar não os fatos em si mas a credibilidade de quem os publica2 - ao mesmo tempo, costuma-se elevar as mídias que concordam com a sua posição.

O efeito disso é corrosivo pois cria grupos que se tornam absolutamente inacessíveis para jornais específicos e que, ao verem seu público possível mais delimitado, acabam focando em criar conteúdo para os mesmo.

O quarto mecanismo: a simpatia

É comum termos simpatia por quem costuma passar os mesmos perrengues que a gente - em algum grau, nos identificamos em seus problemas e seus sucessos. O perigo disso é que, acoplada à desconfiança, acabamos por acreditar mais em quem está próximo do quem em quem é crível.

As correntes de Whatsapp circulam freneticamente por essa rede de simpatias.

“Fulano já foi assaltado e me falou que…”

“Ciclana frequenta a minha igreja e viu que…”

Essa simpatia faz com que as pessoas pareçam isentas de interesses secundários pois nós mesmos temos dificuldades para perceber que somos criaturas cheias de viés: gostamos de pensarmo-nos evoluídos, sábios e ajuízados.

Não somos.

Atente que simpatia não é empatia - a primeira implica criarmos apreço por alguém ou algo. A segunda significa nos colocarmos na situação do outro.

O quinto mecanismo: o inimigo

Uma técnica recorrente de movimentos totalitários é a criação da imagem de um inimigo. Pinta-se uma figura disforme, uma caixa na qual pertencem todos aqueles de discordam ou criticam o movimento. É a essência do slogan da ditadura de 1964: “Brasil: ame-o ou deixe-o”3.

Entenda que num estado totalitário a crítica não é permitida pois a mesma é um convite para a reflexão - e é impossível refletir na mentira sem destruí-la.

O resultado é que as pessoas precisam se isolar em câmaras de eco, mantendo sempre a mentalidade do grupo. Por isso que quando, por exemplo, alguém estabelece críticas a líderes de extrema direita no Brasil, a resposta imediata em seções de comentários são pessoas acusando-a de ser comunista - não porque aquela pessoa é ou não comunista mas porque discordar da voz do grupo a coloca no grupo inimigo.

Exemplos notáveis incluem pessoas clamando que FHC, The Economist, Revista Exame, Francis Fukuyama e afins são comunistas.

O sexto mecanismo: as mídias sociais

Vale ressaltar, antes de mais nada, que as mídias sociais são produzidas visando o lucro. Sua gratuidade serve para atrair o maior número de pessoas e que então é necessário para as mesmas monetizar seu público. Isso geralmente é feito com propagandas, que tem seu valor agregado conforme sua acurácia4 - essa que aumenta conforme a quantidade de dados disponíveis.

Elas não precisariam ser parte do problema mas escolhem fazê-lo por design para manterem-se lucrativas. Não lhes interessa fazer ferramentas para denunciar notícias falsas, nem remover usuários populares mas problemáticos5, nem fazer curadoria de publicações em destaque, nem pensar os efeitos dos anúncios terem custos que variam conforme o público alvo.

Um exemplo desse último ponto é que, durante as eleições dos Estados Unidos de 2016, o custo médio para anunciar para pessoas com tendências mais conservadoras era mais baixo do que para progressistas. Isso permitia que o mesmo dinheiro tivesse um alcance e impacto completamente diferente.

Sem ferramentas para combater fake news e afins, o trabalho das pessoas que visam manipular esses sistemas fica bem fácil6 e com baixas probabilidades de haverem repercussões negativas para os mesmos.

O sétimo mecanismo: o capital

Esse mecanismo funciona de maneira dupla - as pessoas com mais recursos conseguem investir mais na subversão do sistema, chegando mais facilmente nos seus objetivos (eleição de candidatos específicos, aprovação de novas leis, etc…).

É a diferença entre uma marca gastar 10 mil ou 10 milhões em propaganda e é o motivo pelo qual estados com amplos recursos - Rússia, China, EUA, etc… - conseguem utilizar da plataforma para seu benefício próprio, combatendo opositores7.

A segunda questão do capital é que vários negócios, afim de manterem-se viáveis e/ou por ganância, optam por tomar parte dessa exploração abusiva. Para jornais e revistas, é necessário competir com as correntes de mídias sociais, com filmagens de celular e testemunhos in loco.

A disparidade de custos obriga muitos lugares a cortarem tarefas antes consideradas essenciais. Um(a) editor(a)? As correntes de Whatsapp não tem editores. Unidade de verificação de fatos? Grupos de FaceBook não tem nada disso. Entrevista com múltiplas fontes? No Twitter basta alguém influente falar algo.

O engenho da destruição

O combate da pós-verdade é complexo pois ele demanda das pessoas cabeças frias, capacidade de superar opiniões passadas, aceitar novas ideias e compreender o outro. Essa exigência de racionalidade mesclada com empatia não só é difícil de se encontrar como é difícil de se manter.

O que vemos nas urnas, nas escolas, nas ruas e em muitas famílias do Brasil é o oposto disso. As pessoas estufam o peito com orgulho de sua ignorância política, tomam posições radicais sem olhar para os dados ou para o outro pois acham que isso sim vai mudar o mundo.

Eu também achava isso - quando eu era pequena. Por sorte tive quem me ajudasse, me ouvisse, me ensinasse e agora entendo. A sociedade é uma construção multidisciplinar constante, um trabalho de formiga, de geração em geração.

Mas vamos perder nossa história, nossa cultura, nosso valor e onde antes haviam museus, haverão ruínas.


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